quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Reconhecimento do Direito à Adequação do nome e do sexo de "Roberta Close"

 
Reconhecimento do direito a adequação do nome e sexo de “Roberta Close”
Por Tereza Rodrigues Vieira·
Introdução
Em 1990, ao ler uma matéria em folha dupla publicada em um jornal de grande circulação em que ressaltava as dificuldades das pessoas que não estavam adequadas ao seu verdadeiro sexo, resolvemos escolher este tema como tese de doutoramento na PUC-SP. Em 1989, sob a orientação da professora Maria Helena Diniz, já havíamos sustentado naquela instituição uma dissertação de mestrado que abordava dezenas de motivos ensejadores de Mudança no Nome das Pessoas Físicas. Incansavelmente, procuramos material sobre o tema, ocasião em que constatamos a sua escassez e a imperiosa necessidade de expandir os estudos no Exterior. Solicitamos uma bolsa ao Governo brasileiro demonstrando a necessidade do preenchimento desta lacuna. Inscrevemo-nos também na Universidade de Paris, fixando residência na capital francesa  por 2 anos e meio. Realizamos pesquisas em dezenas de bibliotecas e  livrarias em treze países europeus. No intuito de ampliar a compreensão da sexualidade humana realizamos cursos de especialização em Bioética na Faculdade de Medicina da  USP  e em Sexualidade Humana.   Hoje cursamos a Faculdade de Psicologia.
  A “coisa julgada”
 O desejo de adequar o prenome e o sexo nos documentos é uma constante na memória daquele se sente preso a uma documentação que não condiz com a realidade vivenciada desde a mais tenra idade, causando-lhe sofrimento e exposição a situações ridículas. O caso Roberta Close tornou-se público, com centenas de matérias veiculadas sem expressar a verdade. Após a realização da cirurgia de “adequação de sexo”- terminologia por nós preferida-  na Inglaterra em 1989, Roberta ingressou em juízo postulando mudança de nome, obtendo em 1992, em primeira instância, êxito em seu pleito, em louvável decisão proferida pela então juíza Conceição Mousnier. Houve recurso por parte do Ministério Público e a sentença foi reformada pelo Supremo Tribunal Federal, em 1997.
Apesar de conhecê-la pessoalmente desde 1996, em 2000 Roberta nos procurou e propusemos em 2001 uma nova Ação junto a 9.ª Vara de Família do Rio de Janeiro, vez que não há que se falar em coisa julgada material, por se tratar de jurisdição voluntária, podendo ser revista. Quatro anos depois, Roberta, finalmente, foi reconhecida como mulher pela Justiça brasileira. Após uma luta de quinze anos para mudar sua documentação de Luís Roberto Gambine Moreira para Roberta  Gambine Moreira, a modelo foi reconhecida como pessoa do sexo feminino. A decisão de 1.ª instância foi dada no dia 4 de março de 2005,  pela juíza Leise Rodrigues Espírito Santo. Segundo esta respeitada magistrada “não obstante a coisa julgada versar sobre questão de ordem pública já superada, se faz mister registrar que o pedido formulado é referente ao estado de pessoa, e que a ação manejada admite revisão quando presentes os requisitos legais autorizadores da modificação jurídica pretendida, por se encontrar inserida no âmbito da jurisdição voluntária.(...) Não há como afirmar que a coisa julgada foi atingida, primeiramente, como já foi dito,  ela sequer foi formada, ademais, a evolução da medicina e precisão dos técnicos da perícia, deixam claro que a presente ação tem novo fundamento”.
 

Pareceres de experts e laudos periciais 


Conclusão


 
Fundamentamos o direito da Requerente em diversos elementos, dentre eles na  lei 9.708/98; Resoluções recentes do Conselho Federal de Medicina; nos arts. 3º, IV, 5º, X, 196, 199 da  Constituição Federal; no art.13 do CCB e no art. 2 da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos humanos, aprovada em 11 de novembro de 1997, que estabelece que “Todos têm o direito ao respeito por sua dignidade e seus direitos humanos, independentemente de suas características genéticas. Essa dignidade faz com  que seja imperativo não reduzir os indivíduos a suas características genéticas e respeitar sua singularidade e diversidade”.   Somente aqueles que jamais conheceram pessoas como a Requerente opinam de forma contrária, baseando-se em preconceito, ignorando a cientificidade da questão.
Todos nós temos o dever de contribuir para a eliminação das desigualdades, para vermos respeitado o princípio da dignidade da pessoa humana, cuja privação infringe garantia fundamental.Ninguém jamais pode desistir de ser feliz.[1]
 
 
Artigo publicado na Revista Consulex n.199, Brasilia: Consulex,  30.04.2005. Este artigo poderá ser divulgado desde que citada a fonte.
 


· Doutora em Direito pela PUC-SP/ Université Paris.  Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP. Professora de Direito e Enfermagem na Unicastelo, UniABC e Unipar. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética; da Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana e Consultora do Centro de Estudos em  Bioética Direito  Ethosvitae –São Paulo.Acad.Psicologia.
 
[1] De nossa procuração constam também os poderes de “opinar, emitir pareceres e opiniões acerca do caso”.Ademais, o caráter do presente é científico.
 
 


 
 Peritos em genética, endocrinologia e neuropsiquiatria encontraram causas biológicas para a identidade desordenada do sexo. O Direito deve sempre buscar a verdade e esta é mais autêntica e exata, quando está fundamentada em provas resultantes de apurados exames e técnicas atuais, emitidas por profissionais ou órgãos de extrema confiabilidade, expressando entendimento atualizado correspondente à realidade.
Buscar a justiça é dever dos operadores do Direito e esta não é atingida quando se ignora as novas descobertas científicas. Desconhecê-las significa contribuir com a imutabilidade dos efeitos de uma decisão que não mais representa a realidade. Isto é justiça? Além do nosso parecer com 61 laudas, Roberta se submeteu a avaliação de 10 experts: 3 endocrinologistas, 1 psiquiatra, 2 geneticistas, 1 cirurgião plástico, 1 neuropsiquiatra, 1 médico-legista, 1 psicóloga, todos pertencentes aos mais renomados órgãos de saúde de São Paulo e do Rio de Janeiro ( USP, PUC-SP, UNICAMP,Faculdade de Medicina de Jundiaí,  UNIFESP, FIOCRUZ). Nunca houve um caso em que alguém tenha se submetido a tantos peritos no assunto. Assim, esclarece a erudita magistrada: "Em face da unanimidade dos pareceres e laudos médicos, resta inequívoco que a parte requerente não possui tão somente perfil psicológico feminino, mas também possui caracteres biológicos próprios de uma mulher, sendo, portanto, indiscutível seu direito de pleitear a alteração de nome civil e sexo, por ser inaceitável que suporte os danos causados pelas complicadas transformações e diferenciações ocorridas em seu corpo no momento da gestação”.
Os marcadores x levaram Roberta a intersexualidade, o mosaicismo, bem como a alta impregnação ocorrida no momento de diferenciação de sexo. No momento do cromossomo se dirigir à gônada na fecundação, o receptor defeituoso não mandou a informação para o hipotálamo, no cérebro, que se desenvolveu como um ser feminino.
Os tratamentos e intervenções cirúrgicas com respaldo médico e psicológico deverão ser considerados intervenções terapêuticas (art.13 CCB 2002).Com a realização da cirurgia corretiva, o único elemento que ainda vinculava a Requerente ao sexo masculino era a documentação.
A adequação do prenome e do sexo não prejudica direitos de terceiros, caso haja algum problema jurídico em decorrência do nome anterior. Por este motivo, eis o que diz a sentença:"julgo procedente o pedido, pelo que determino, a expedição de mandado de averbação da retificação do nome e do sexo no registro de nascimento de Luis Roberto Gambine Moreira, que deverá figurar agora em diante como sendo ROBERTA GAMBINE MOREIRA, do sexo feminino, mantendo-se os demais dados, constantes quanto à naturalidade data de nascimento e filiação.Determino ao fim de resguardar possíveis interesses de terceiros que conste à margem do registro a anotação quanto ao fato de a alteração de nome e de Estado, deu-se por força de sentença".
 
Parecer do Ministério Público e Sentença
 
 
Destacou o ilustre representante do Ministério Público, Marcelo Carvalho Mota, que “os pareceres e laudos médicos constantes dos autos são conclusivos no sentido de que a requerente não possui apenas perfil psicológico feminino, como também caracteres biológicos próprios de uma mulher.(...) Ademais, “se faz necessário também, eliminar as situações de constrangimento, com intensa dor moral, por que passa a requerente, ao ter que exibir no meio social identidade que não é a sua realidade, mas decorrente de assento de cartório desconforme a sua realidade - hoje diagnosticada como verdadeira pela perícia recente”. Opinou pela procedência do pedido.
Em sentença de 14 páginas, afirma a preclara magistrada que o principio supremo da ordem jurídica, a dignidade humana, possui dupla dimensão, quais sejam: o seu efeito positivo que impõe ao Estado o fornecimento do mínimo essencial para garantir a dignidade das pessoas e o seu efeito negativo que proíbe a prática de atos atentatórios a esse núcleo mínimo por parte do Estado. Garantir o mínimo de dignidade das pessoas e proteger esse núcleo de lesões é o dever maior do Estado, por força do art. 1.º, inciso III da Constituição brasileira.De nada adianta ter direitos se não podemos exercê-los. Mesmo àqueles que não têm consciência da própria dignidade devem tê-la respeitada, pois isto, não estabelece um simples ato de bondade, mas, um dever de solidariedade.
Infere a juíza dos autos que Roberta é uma pessoa do sexo feminino, que tem por condição humana, o direito ao nome e à imagem. Assim, a modificação do prenome se faz necessária para adequá-la à imagem feminina.
Assim, o desajuste somente agora compreendido, autoriza a retificação postulada. “O direito não pode desamparar a parte autora, sendo cético às evoluções da ciência, pois assim como a Medicina, as normas e princípios estão sempre em mutação, e o Estado-Juiz deve entender que o homem é o objetivo da existência do Direito, assim como da Ciência Médica”, proclama a versada magistrada.

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