sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Entrevista com Tereza Rodrigues Vieira ao site do G1 TV GLOBO - por Raquel Morais

18/09/2014 18h31 - Atualizado em 18/09/2014 20h46

Transexuais são expulsas de banheiro feminino de shopping do DF

Conjunto Nacional abriu processo interno nesta quinta para investigar caso.
Jovens afirmam que foram humilhadas e estudam entrar com processo.

Raquel MoraisDo G1 DF
Montagem de fotos feitas pela transexual Marie Flora da Silva após ser barrada em banheiro feminino no Conjunto Nacional, em Brasília (Foto: Marie Flora da Silva/Arquivo Pessoal)Montagem de fotos feitas pela transexual Marie Flora da Silva após ser barrada em banheiro feminino no Conjunto Nacional, em Brasília (Foto: Marie Flora da Silva/Arquivo Pessoal)
O Shopping Conjunto Nacional, em Brasília, abriu processo interno nesta quinta-feira (18) para apurar a denúncia de que duas transexuais foram retiradas à força do banheiro feminino depois da reclamação de uma cliente. Os seguranças teriam alegado que estavam apenas cumprindo ordens da administração. As jovens afirmam que foram humilhadas na frente de outros funcionários e que sofreram assédio dentro do banheiro masculino.
Isso já vem de uma cultura que naturaliza violentar, matar pessoas trans. Essa questão do banheiro [de expulsar] as pessoas consideram natural, esquecendo que usar o banheiro é um direito básico. Esse preconceito segue a lógica do Apartheid, da segregação."
Jaqueline Gomes de Jesus,
membro do Conselho Regional de Psicologia
Em nota, o Conjunto Nacional disse que "respeita os valores humanos, a diversidade e não tolera nenhuma forma de discriminação". “A companhia reitera ainda que realiza treinamentos constantes com a equipe de segurança para abordagem e tratamento com o público de forma geral e reforça sempre os valores baseados na ética, respeito, humildade e transparência.” Uma representante do shopping ligou para as jovens para se desculpar sobre o ocorrido.

O incidente aconteceu nesta terça-feira (16). Marie Flora da Silva, de 24 anos, e Allexia Rizzon, de 21, dizem que entraram no estabelecimento para retocar a maquiagem. As amigas afirmam que sempre frequentaram o ambiente e que nunca passaram por qualquer tipo de constrangimento.  
“Uma mulher olhou para a gente com a cara meio que ruim e saiu. Aí, quando a gente ainda estava dentro do banheiro, dois seguranças entraram e disseram que receberam a denúncia de que havia homens usando o banheiro feminino. Veio um monte de cliente e de funcionário rindo, apontando”, conta Marie Flora.
Allexia diz que estranhou o tom usado pelos seguranças, que as abordaram chamando de “senhores”. “Não acreditei, fiquei muito muito brava. Senti raiva, muita raiva, tanto ódio que quase chorei. Sabe quando você pensa que algo nunca vai acontecer com você? Foi tipo isso. Durou uns cinco minutos isso, e todo mundo ficou olhando para a gente.”
A transexual Marie Flora da Silva (Foto: Marie Flora da Silva/Arquivo Pessoal)A transexual Marie Flora da Silva (Foto: Marie Flora
da Silva/Arquivo Pessoal)
As garotas afirmam que foram orientadas a usar o banheiro masculino. Marie Flora diz que questionou os seguranças, alegando que elas poderiam sofrer assédio no outro ambiente, e que eles foram irredutíveis.
“Disseram que não podiam fazer nada e ficaram rindo, como se fosse uma comédia. Demonstraram zero preocupação conosco. Você vai ao chão, fica acabada”, afirmou a garota.
No banheiro masculino, a jovem relata ter ouvido piadas sarcásticas e pedidos para passar o telefone. “Sem falar nos ridículos do mictório, fazendo insinuações com o pênis”, completou.
A jovem decidiu postar o ocorrido em uma rede social. Em 16 horas, 3.099 pessoas haviam curtido a publicação e 464 compartilhado o texto. Marie Flora pôs fotos feitas com os seguranças e dentro do banheiro para comprovar a situação.
Membro do Conselho Regional de Psicologia, Jaqueline Gomes de Jesus lamentou a situação. “Isso já vem de uma cultura que naturaliza violentar, matar pessoas trans. Essa questão do banheiro [de expulsar] as pessoas consideram natural, esquecendo que usar o banheiro é um direito básico. Esse preconceito segue a lógica do apartheid, da segregação.”
Segundo a psicóloga, pesquisas mostram que o Brasil é o país em que mais se mata transexuais. A condição, considerada pela Organização Mundial da Saúde como um transtorno de identidade de gênero, ocorre quando a pessoa se vê como sendo de um sexo oposto ao qual nasce – não necessariamente ela precisa operar.
Disseram que não podiam fazer nada e ficaram rindo, como se fosse uma comédia. Demonstraram zero preocupação conosco. Você vai ao chão, fica acabada. [...] Sem falar nos ridículos do mictório, fazendo insinuações com o pênis."
Marie Flora da Silva,
transexual expulsa de banheiro de shopping
"O Brasil é o país onde mais se mata e tem 50% a mais de mortes do que o país que está no segundo lugar neste tipo de violência no mundo, que é o México. Fala-se muito da violência nos países islâmicos e na África, que têm mais violações com relação às pessoas homossexuais, mas é muito mais seguro para uma mulher trans morar em um país como o Irã do que no Brasil. Não é questão de lá serem reprimidos e não poderem demonstrar, pelo contrário: lá tem até programa sobre transgenia”, afirma Jaqueline.
Allexia disse que estuda como processar o shopping. “Eu nunca me senti tão humilhada na vida. Já sofri preconceito, mas não chegou a esse ponto. Nas nossas famílias, todo mundo nos apoia, todo mundo chama a gente pelo nome feminino. Minha mãe ficou chocada com isso. Só quem vive o preconceito sabe como é ruim e como dói.”
Preconceito e crime
A discriminação motivada unicamente por orientação sexual ou gênero não é considerada crime. Atualmente, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados está analisando o projeto de lei 122/2006, que criminaliza a situação.
Presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil, Rodrigo Camargo afirmou que o constrangimento ocorrido no shopping pode gerar indenização. “Os transexuais, assim como qualquer outra pessoa, também se sentem lesados em sua imagem, em sua honra e em sua vida privada”, explicou. “Elas [Marie Flora e Allexia] foram submetidas, sem a vontade própria, a uma situação vexatória, causada aí pelo shopping e pelos seus empregados.”
A transexual Allexia Rizzon, retirada de banheiro em Brasília (Foto: Allexia Rizzon/Arquivo Pessoal)A transexual Allexia Rizzon, retirada de banheiro em
Brasília (Foto: Allexia Rizzon/Arquivo Pessoal)
Segundo o advogado, uma pesquisa divulgada no ano passado mostra que o país tem 60 mil famílias homossexuais. Camargo diz acreditar que os números não refletem a realidade porque nem todas as pessoas se sentem à vontade em se assumir sexualmente. Ele afirma também haver uma “situação endêmica” em relação ao tratamento das coisas relacionadas ao segmento, incluindo a violência.
“Tem uma certa invisibilidade do segmento LGBT. Essa invisibilidade acaba retirando esse segmento de ser sujeito de direitos também. Não há um amparo legal para que possa reparar essa situação, já que tem uma visão da sociedade totalmente preconceituosa. Hoje a gente vê muito o Legislativo mais engessado, o que faz com que o Judiciário acabe preenchendo as lacunas. Ele entra permitindo a adoção do nome sexual, a união estável entre homossexuais e a indenização por danos morais nestes casos discriminatórios.”, declarou o especialista.
Especialista em casos de mudança de nome e mudança de sexo, a advogada Tereza Vieira disse ter opinião semelhante à de Camargo. "A nosso ver, os transexuais devem usar o banheiro de acordo com o gênero com o qual se identificam e se sentem pertencer. Os estabelecimentos devem treinar os funcionários para aprenderem a respeitar a diversidade. Discriminar ou agir preconceituosamente contra o público LGBT demonstra intolerância à liberdade e exercício da cidadania."
A Polícia Civil informou que, dependendo do caso, há também outras condutas que podem ser associadas à discriminação contra homossexuais e transexuais, como injúria, difamação e lesão corporal. Essas infrações são puníveis na esfera criminal.

Entrevista com TEREZA RODRIGUES VIEIRA sobre uso de banheiros em estabelecimentos abertos ao público por transexuais. Advogada especialista em mudança de nome e sexo, professora universitária, PhD em Direito pela Université de Montreal (Canadá), com diversas obras publicadas sobre o assunto. 11 99995-4364 terezavieira@uol.com.br

1.    Existe lei sobre transexualidade no Brasil?
R.Infelizmente, ainda não temos lei específica, em nível nacional, que aborde o assunto de forma explícita. Para o uso do nome social, há portarias, decretos etc que o autorizam em estabelecimentos de ensino, de saúde etc. Existem alguns projetos de lei, mas nenhum na iminência de ser aprovado neste momento. Este assunto não traz votos, pelo contrário, bancadas religiosas o rejeitam veementemente. As pessoas transexuais e travestis também encontram problemas de uso do banheiro de acordo com o gênero, no trabalho e nas escolas. Está em discussão o anteprojeto de lei do Estatuto da Diversidade Sexual, do qual integrei a primeira comissão nomeada pela OAB para a sua elaboração, no qual há um artigo específico que determina que em todos os espaços públicos e abertos ao público é assegurado o uso das dependências e instalações correspondentes à identidade de gênero. A advogada gaúcha Maria Berenice Dias coordena a equipe e comanda  nacionalmente a coleta de mais de um milhão de assinaturas para aprovação do Estatuto. http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=EDS
2.    Há estados que regulamentam o uso de banheiro públicos?
R Há cidades em que a Câmara de Vereadores aprovou lei proibindo o uso de banheiro público por travestis. O Estado de São Paulo enfrentou a situação, em decorrência de alguns casos semelhantes terem ocorrido em shoppings da capital. O transexual é quem deve escolher qual banheiro deseja utilizar. Ademais, existem penalidades para os infratores da Lei 10.948, de 2001, que pune a discriminação contra transgêneros, inclusive, proibindo o ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou aberto ao público. A vítima LGBT poderá, inclusive, pedir indenização por dano moral.
3.    O que podem os transexuais ou travestis fazerem nesta situação?
R A nosso ver, os transexuais devem usar o banheiro de acordo com o gênero com o qual se identificam e se sentem pertencer. Os estabelecimentos devem treinar os funcionários para aprenderem a  respeitar a diversidade. Discriminar ou agir preconceituosamente contra  o público LGBT  demonstra intolerância à liberdade e exercício da cidadania. Quem se sentir ofendido pode imediatamente procurar a administração do estabelecimento, Defensoria Pública (disque 181), Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria da Justiça e da Cidadania, Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI). Pode usar o Disque 100 ou envio de mensagem para o disquedenuncia@sdh.gov.br, por tratar-se de uma violência aos direitos humanos. Assim, os transgêneros podem apresentar sua denúncia pessoalmente ou por carta, internet ao órgão competente estadual ou ONG de defesa da cidadania e direitos humanos. Os estabelecimentos poderão receber advertência, multa ou terem suas licenças de funcionamento cassadas. A vítima, poderá, inclusive, acionar juridicamente o estabelecimento para eventual responsabilização civil, com indenização por dano moral. 
Sou contrária a criação de banheiros exclusivos para o público LGBT, o que é ofensivo, discriminatório e afronta  o direito à diversidade sexual. Homossexualidade e transexualidade não são doenças. Nossa sociedade é plural e o respeito à diversidade promove o exercício da cidadania.
4.    Que direitos são afrontados com a proibição do uso do banheiro feminino por transexuais?
R Infringe sua dignidade enquanto pessoa humana, protegida pela Constituição Federal, além do princípio da igualdade. Transexuais e travestis têm os mesmos direitos assegurados  aos demais cidadãos. O uso do banheiro deve ser garantido a todos de acordo com o gênero a que sente pertencer. Fazer uso de banheiro diverso incompatível com sua identidade de gênero é discriminatório  e infringe a autodeterminação.
Nenhuma norma pública ou interna poderá desrespeitar o livre exercício da identidade de gênero ou da orientação sexual das pessoas. As normas existentes devem ser interpretadas sempre em favor da não discriminação.
5.    Todos os transexuais sofrem preconceito?

 R Independentemente do número de transexuais que exista, entendemos que não há um único que não tenha sofrido algum tipo de discriminação ou preconceito uma vez na vida, pelo menos, em decorrência da sua identidade de gênero discrepante com seu sexo biológico de nascimento. Sucede que, nem todos denunciavam. Hoje em dia existem mais canais para as denúncias. Sou a favor da criminalização da homofobia e da transfobia. As pessoas passaram a respeitar mais o negro depois que a discriminação racial passou a ser crime inafiançável. O mesmo deveria ocorrer quanto à discriminação aos LGBTs.